sábado, 15 de outubro de 2011

QUE MACHADO ME PERDOE


Há certas coisas na vida da gente nas quais passaríamos uma borracha, se assim fosse possível. Certas histórias que nunca deveriam ser contadas. No entanto, essa pode ser minha última chance de tentar entender o que realmente se passou naquela noite. Algo confuso e inesperado que me enche de vergonha; o que prova que a fronteira entre a razão e a loucura é uma membrana frágil e invisível. Conto essa história, portanto, para poder organizar as ideias e encontrar o momento ou motivo que me trouxeram até aqui.
Pode ser que você não acredite, mas tão certo como aconteceu é o fato de eu estar agora escrevendo estas palavras. Peço desculpas, porém, se, por conta da memória, que sempre apronta das suas, a história me vier difusa ou desordenada. Lembranças são como miragens, você acredita que está vendo, se aproxima, e ela some, surgindo depois novamente; são escorregadias e peraltas.
O dia não havia sido leve sobre meus ombros. Não estou exagerando e nem sou de reclamar, é só uma constatação. Desde os dez minutos pós-café-preto-e-três-fatias-de-pão-sovado, às oito e quinze da manhã, até o cair da noite, por volta das 19 horas, com exceção de um breve lanche às duas da tarde e duas ou três vezes que parei para esticar as pernas e fumar um cigarro, me dediquei a corrigir textos dos meus alunos - nada menos do que cento e vinte textos to tipo dissertativo-argumentativo do Ensino Médio e sessenta artigos de opinião dos oitavos anos. Passados os primeiros, sei lá, vinte textos, vamos dizer, com os quais ainda me divirto, exaspero ou desespero, baixa o funcionário público com sua mesa lotada de documentos por examinar e despachar. É lógico que, mesmo assim, como era de se esperar, não dei conta de toda tarefa. Como dizem por aí: são os ossos do ofício. E quantos são os ossos que precisamos roer nessa profissão. Loucos os desavisados que entram nessa vereda por pensar que professor trabalha pouco e ganha bem. Mas isso é outra história.
Empurrando o restante do trabalho para debaixo do tapete do amanhã, resolvi tomar uma boa ducha e relaxar. Depois do banho tratei de abrir uma garrafa de vinho, excelente remédio para aliviar o estresse.  Era preciso voltar ao normal primeiro, ou fugir daquela realidade de sala de aula que sempre salta os muros da escola e invade minha casa aos finais de semana. Assim, foi com um prazer enorme que deliciei uma taça de Cabernet Sauvignon, uma boa safra chilena, da cidade de Puerto Varas, ou seria Talca? Não me lembro ao certo, da qual possuía algumas garrafas no armário. Essa primeira taça foi sorvida rapidamente, devido à ansiedade. Então tomei outra, e depois mais outra, desta vez mais devagar, saboreando de verdade.
Há tempos não vejo um bom filme e minha lista de filmes por assistir está enorme. O último foi “Uma Mente Brilhante”, filme inteligente e marcante, recheado de cenas fortes, impactantes. Uma delas é a cena em que o pobre matemático percebe a loucura de estar falando com seres imaginários, revelando toda a frustração ao perceber que tudo era invenção sua. Recorrendo a lista, matava três coelhos com uma cajadada só: relaxar; aplacar meu desejo de ver uma boa obra de arte; diminuir a lista de filmes pendentes.
Entre um gole e outro, na dúvida entre um Almodóvar ou um Wood Allen, ouço baterem à porta. Esperei. Uma batida suave, porém firme e ritmada, voltou a insistir. Deixei os DVDs na estante de mogno, lembrança de minha mãe, repousei a taça sobre a mesinha de centro, e fui ver quem era. Engana-se, contudo, se pensa que fiz isso na intenção de acolher alguém em minha casa. Bem se vê que não me conhece mesmo. Algumas pessoas, que convivem com gente a semana inteira, às vezes centenas delas, como é o meu caso, posso afirmar, só desejam encontrar a própria sombra no aconchego do lar. Sou desse tipo de gente, não gosto de receber visitas, principalmente vendedores, pedintes, testemunhas de Jeová e aqueles amigos que só têm hora para entrar na sua casa, mas nunca para sair. Mesmo amigos queridos não escapam, sempre tenho uma desculpa. Talvez por isso tenham me apelidado de Ermitão, “Mister” Ermitão, para parecer importante. Pois bem, em situações como a daquela noite, minha estratégia é, simplesmente, ficar quieto e observar pelo olho mágico, até que a visita indesejada se vá. Como a casa estava na penumbra e não havia ruídos, não haveria problema algum, seria questão de um ou dois minutos até que a pessoa desistisse. Minutos que, verdade seja dita, muitas vezes duram um eternidade. Mesmo assim, nada paga nosso sossego, não é mesmo?
Até aqui, como pôde perceber, tudo normal. Minha memória colabora feito testemunha fiel e solícita, como que buscando ajudar na solução de um importante caso policial. Verdade é que não bebi muito até ali, havia dado cabo apenas do primeiro chileno da noite. O que aconteceu a partir daí é que são elas. Se quiser continuar a ler, verá que coisas incríveis irão acontecer ainda. Contudo corro o risco de que não me leve a sério, ou de que ache que não bato bem do juízo, ou, ainda, que o cansaço e o álcool são os responsáveis por certa ilusão dos fatos, ou parte deles. No entanto, posso afirmar que tudo aconteceu realmente, como descrevo a seguir. Não lhe culpo, todavia, se estiver enfastiado dessa história. Não se sinta obrigado a perder seu tempo. Aconselho-o mesmo a procurar algo mais importante a fazer, afinal, o que vou contar pode não ser grande coisa no final das contas. De mais a mais, há sempre algo urgente e necessário em que se empenhar. Talvez seja preciso dar banho no cachorro, engraxar os sapatos, lavar o carro, ou, ainda, postar valiosos comentários em sua comunidade virtual. Entretanto, caso tenha paciência para ir um pouco adiante, peço que me acompanhe nas próximas linhas.
Como sempre faço, dei uma espiada pela veneziana de plástico da cozinha, há ali um cantinho discreto: vê-se de dentro sem ser visto pelo alguém de fora. Meu objetivo era ver se reconhecia quem era o causador daquele incômodo repentino. Dali, pude ver um homem mediano, mais ou menos da minha altura, e idade já um pouco avançada, que esperava uma resposta ao pé da porta. O curioso é que trajava uma bela casaca inglesa preta e usava cartola. Movido pela curiosidade, fui a té a porta e me aproximei do olho mágico tentando descobrir quem era a tal figura. Sem sucesso, resolvi abrir, já que parecia tratar-se de gente de bem. Poderia até arriscar ali havia pessoa de grande importância. Há homens que ainda conseguem causar boa impressão pela veste que trajam, outros nem assim. Ao vê-lo tive uma forte impressão de conhecer aquele rosto, mas ponderei estar enganado. Começamos essa conversa que transcrevo tal qual sou capaz de lembrar, desejando que ela nunca tivesse acontecido.
- Boa noite! Chamo-me Bento, seu criado.
- Boa noite! Respondi reticente. Tenho a impressão de conhecê-lo de algum lugar...
- Com certeza me conhece. Posso lhe ajudar. Os mais íntimos me chamam de Casmurro, Dom Casmurro, para ser mais claro. Isso lhe diz alguma coisa agora?
- (Surpreso e pasmo) Claro, Sr. Bento. Como não haveria de me lembrar de pessoa tão famosa e ilustre. Conheço sua história e digo que sinto muito por tudo que passou.
- Não se preocupe. Tudo é passageiro nesta vida. É como diz o poeta “Ainda vai levar um tempo, pra fechar o que feriu por dentro”, mas lhe asseguro, sobrevive-se. Posso entrar?
- Por favor, desculpe a falta de educação. É que eu não esperava...
- Você sofre do mesmo mal que eu: És um solitário!
- Gosto de estar só, apenas isso.
- Não é pouca coisa, acredite. No começo, logo depois da partida de Capitú, pensava o mesmo. O tempo passa e você vai ficando cada vez mais ensimesmado e acaba enclausurado no seu microcosmo.
Parecia querer me dar um sermão naquele momento, lembrou-me meu pai. Talvez pelo ar de importância que procurava colocar em sua voz. Tratei de abrir outra garrafa de vinho ali mesmo na sala, depositando o saca-rolhas sobre a mesinha. Sem perguntar, como que adivinhando um desejo natural, ofereci uma taça ao elegante senhor, que não se fez de rogado. Em pouco tempo já esvaziávamos a segunda garrafa. Tínhamos muita sede e havia muito a conversar. Falamos de diversos assuntos, desde moda, já que lhe declarei minha surpresa ao vê-lo vestido daquele jeito, até tecnologia e política. Um homem sábio estava ali à minha frente. As horas foram avançando, o converse se desdobrando e o vinho nos deixando mais falantes, indiscretos e agressivos até. Como não podia deixar de ser, eu tinha que lhe perguntar sobre Capitú. Afinal, desde as descrições de Machado, foi a menina-mulher que figurou no meu imaginário como uma deusa do amor, na meninice gostosa e sensual de suas brincadeiras e ousadias, desde minha adolescência. O primeiro beijo, que ela roubou do tímido Bentinho, me fez fechar os olhos e sentir, nos meus próprios, os lábios quentes daquela pequena ninfa; pude ver seu sorriso maroto e os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, como narrava o velho Casmurro. Mas o assunto era delicado. Comecei elogiando...
- Sabe, Sr. Bento, gostaria de dizer que escrever sua história foi um gesto muito digno e generoso. Poucos teriam coragem de revelar aspectos tão particulares da relação de vocês dois, como você fez.
- Gentileza sua. O que fiz foi antes um desabafo do que outra coisa.
- Você deve ter amado muito aquela mulher, não é mesmo?
- Tanto que seria impossível descrever. Eu seria capaz de contrariar minha própria mãe, caso ela não desistisse daquela ideia absurda de me fazer padre, pode isso? Quando criança nem ligava, mas depois que Capitú entrou na minha vida meus planos eram outros.
- O que me intriga é o fato de uma história de amor tão bonita ter acabado em tanto sofrimento e separação.
- É, meu rapaz! Se nem eu consigo aceitar isso...
- E o pior... (arrisquei) sem nenhuma razão palpável para isso, sem nenhuma prova real sobre a traição... (Cutucando a onça com vara curta... o que não foi, definitivamente, uma boa ideia.)
- Sem provas! O velho Casmurro se exaltou. Sim, ele já estava bem velho, mas, tão logo entramos nesse assunto, demonstrou tanta energia quanto um jovem de vinte anos.
- Bem se vê que você é um desses que dizem conhecer a obra pela leitura da primeira página - Continuou.
- Calma! Não quis ofendê-lo. Conheço bem o livro, já o li algumas vezes, além de críticas e artigos científicos de especialistas. Além do mais, fiz meus alunos do colegial lerem também, fizeram trabalho inclusive. Se digo isso, é porque você mesmo me levou a pensar assim.
Ao falar isso, fiz o Sr. Bento franzir a testa e irritar-se.
- Como assim? Isso é uma pilhéria! Deixei bem claro através de situações, evidências, mencionei até os olhares lânguidos daquela ingrata, que flagrei diversas vezes, repousando naquele que era meu amigo, o Escobar. O que mais quer de mim?
Era preciso mais vinho para acalmar a fera, estava visivelmente perturbado por minha acusação. Apesar de não gostar do seu tom arrogante e imperativo, eu sabia que deveria perdoá-lo, já que o assunto lhe era tão íntimo e dolorido. Pensei em recuar, mas também tenho o defeito do orgulho, e segui em frente. Na verdade não fui movido só pelo orgulho, não. Fui movido também pelo ciúme. Isso mesmo! Ciúme daquele que havia tido o coração da minha querida Capitú; daquele que não dera valor a tão maravilhosa mulher que lhe tinha dado a mão por esposa; daquele que a fizera sofrer humilhações e abandono. 
- Sabe, Sr. Bento, qualquer jovem que lê o seu livro aprende a amar a Capitú também junto com o “Bentinho”, entende?
- Entendo. Consentiu com a cabeça.
- Pois bem, (Partindo para a ofensa) dessa forma a gente termina por achar que você surtou de ciúmes, sem ofensa.
- Concordo! (Exaltando-se um pouco) Surtei mesmo! Mas com toda razão, não acha? (Recompondo-se, na tentativa ainda conquistar minha confiança).
- (Sem dar brecha) Na verdade, não! Explico. O que você chama de evidências, para muitos não passou de coincidências. Veja um exemplo: você tenta nos convencer de que uma prova da traição é que seu próprio filho, o pequeno Escobar, é filho de seu amigo por se parecer demais com ele, não é verdade? Mas esquece que você mesmo nos falou da semelhança absurda que havia entre a Capitú menina e a mãe de sua melhor amiga, fato que você mesmo presenciou em visita a casa da moça e nos relatou com admiração. Como se vê, são dois pesos e duas medidas, no caso da Capitú você vê coincidência, já no caso do seu filho se tratava de prova irrefutável. O mesmo pode ser dito de outras provas ou evidências apresentadas em sua narrativa.
Neste momento, senti-me dono da situação. Na verdade, já tinha ido longe demais e é certo que deveria ter parado ali. Assim talvez suscitasse alguma reflexão no pobre coitado. Mas não, aí é que me senti no direito de rasgar o verbo. Tivesse eu calado e as coisas não teriam tomado rumo tão desolador. Ah, Baco! Deus da perdição, da desordem, do vinho e da orgia! Como celebrastes minha desgraça aquela noite!
- (Prossegui) Digo mais, sua tentativa de incriminar aquela mulher não surtiu efeito, eu e a maioria das pessoas que conheço sabem que Capitú é uma verdadeira santa!
Quanto mais vinho tomava, mais resultado avesso ao esperado. O homem foi ficando cada vez mais aborrecido com meus argumentos. Minha última frase foi o estopim: ele se levantou da poltrona e vociferou com o indicador em riste; disse-me desaforos e mandou que cuidasse de minha própria vida; aos berros, dizia que eu não tinha a menor ideia do que ele havia passado, e outras coisas que não lembro exatamente agora.
Já embriagado e transtornado com aquela reação violenta daquele homem, pedi as estribeiras e joguei em sua cara as covardias cometidas com o pobre filho e com a própria esposa, mandando-a para a Europa, para viver solitária e triste, longe de tudo e de todos.
- (Dando uma gargalhada nervosa e agressiva) Aquilo foi uma metáfora, seu idiota! Você, um professor de literatura, tão experiente, não foi capaz de entender a metáfora? Bem se vê que és um professorzinho de merda!
- Como assim? Perguntei incrédulo.
- (Gritando, no auge de sua insanidade) EU MATEI AQUELA TRAIDORA! MATEI! MATEI! MATEI A PROSTITUTA MISERÁVEL! ENTENDEU AGORA???
Espanto, surpresa e ódio. Ao ouvir aquilo, minha desgraça foi completa. Saí de mim, perdi totalmente o controle, gritei histericamente repetidas vezes: “ASSASSINO!”, “MENTIROSO!”, “ASSASSINO!”. Verbo e ato, minha mão encontrou o saca-rolhas, na mesinha de centro que separava nossos corpos, e passou a sacudi-lo no ar, ameaçadoramente. Naquele momento ele fez  o que nunca deveria ter feito: me deu um tapa  no rosto que, de tão forte,  posso sentir ainda agora meu rosto queimando. A resposta foi de pronto, o saca-rolha mergulhou no peito do pobre velho diversas vezes, até que a casaca inglesa estrebuchasse no chão da sala, e o preto do tecido fosse, pouco a pouco, se encharcando do líquido escarlate, repousando logo em seguida sem respiração. Contudo, não pude sufocar seus gritos de dor e desespero.
 No auge de nossa desavença, havíamos perdido a noção de tempo e espaço. Assim, não tardou para que os vizinhos e a polícia descobrissem a tragédia. Eu estava parado ali na sala, na frente do corpo, perplexo como quem acorda de um pesadelo desejando que tudo fosse um sonho, completamente absorto na minha insanidade, quando me levaram.  
Hoje, nesse cubículo fétido, sujo e gelado, nesta pequena cidade de Queimados, isolado de tudo e de todos, percebo o real motivo de minha cólera: matei por amor.