domingo, 18 de dezembro de 2011

Tem jeito não!

Tinha que sair dali... uma urgência, mesmo questão de morte. De arriscar é que se prova; esfregou os olhos e apertou, quase enxergando adiante; fazia? não fazia? Fez! Num salto, do vagão ao chão, rolando pela margem de terra forrada de pedras. Doeu? Quase morte. Praguejou, sacudiu, esticou, deixou-se largar deitado. O que fazia Aninha hora dessas? Talvez pensasse nele.
- Nossa cor se combina!
- Você é linda como a lua, sabia?
- Não mente não...
- É a mais pura verdade!
- sabia que adoro chocolate...
Ele riu.
Ela mal sabia do amanhã. Certas coisas são pra se calar.
O vazio lhe deu a mão e caminharam pelos trilhos, olhava cabisbaixo, chutava pedras, contava os dormentes - Sabe aquelas toras de madeira que recebem os trilhos? - Aos poucos voltou a si, peito aberto para o vento preguiçoso daquele final de tarde. Aquilo era bom! Dono de si afinal! Fazia muito não sentia aquela sensação; os pés puseram-se a correr; pulavam os dormentes aos tantos; quase voava; desatou largo na risada.
Do muro, com certeza o horizonte. Subiu e espiou. Carecia de um norte, do de comer, de lugar pra se achegar. Não atinou com o anoitecer. Pensar não tem mestre mesmo, é feito redemoinho que vai e volta, volteia e retoma, segue ziguezagueando por aqui e ali. O muro na sombra se esticando até os trilhos. Talvez chovesse? No barraco, deram falta, certo era a esse tempo; deram deveras? procurariam? dariam graças? uma boca a menos... mas um braço de menos... fazia falta... Ah fazia, e não? O vestido roto de algodão roçava sua pele quando Aninha tentou alcançar seus lábios. Coisa boa! Ôh meu pai se é! Arrepiou, suou de calor e frio; parou, com os lábios ali colados, uma doidera aquilo. Leu não-sei-onde que toda saudade é uma espécie de velhice. Até saudade boa? Até saudade boa! Todas elas, oras! Pois então que se envelheça! Vá lá!
Uma avenida mirrada sumia para além de até-onde-se-pode-ver-com-os-olhos. Não quis pular ainda; demorou-se no espiar o longe. Descendo, recostou na parede de cimento rústica do muro, se largando de cócoras; pegou dum parafuso enferrujado que repousava no meio do matinho ali ao pé; bons minutos... titubeou na ideias certas; pensou na casa, no padrasto de olhos vermelhos, de garrafa em mãos, um filho da puta mesmo... É certa decisão? Exagero? Não vale? Aguentar surras, xingamentos, e..., e..., e...? Não! Não! Não! A mãe... uma lastima, mazela, nem se mexia horas dessas; sempre assim; jogada na cama de solteiro ao pé da televisão, logo ali de costas pra cômoda de imbuía, o espaço pouco, nem de virar de lado se passava direitinho; a outra cama, dos meninos,  dava as costas pro armário da cozinha; era ali mesmo que o coro comia; quantas vezes amaldiçoou aquele infeliz; queria dinheiro o desgraçado; humilhação doída quando os amigos o viam ali na esquina da treze, perto do bar do manéu, morria de raiva daquela vida; a vontade era de matar o sem-jeito... Dava mais não! Tinha jeito não! Fosse homem feito e o puto sangrava na faca. Não pôde esperar; corpo reclama; corpo chora; corpo geme; corpo parte.
Agora é fazer dar jeito! Pulou o muro e seguiu avenida afora.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

CÓLERA

Engolido mais um sapo (ou seria uma pedra? talvez uma rocha...), dei de costas ao boçal do chefe e segui emputecido. Não é meu chefe, na verdade, um mero coocupante de uma bosta de cargo de chefia, preconceituoso, antissemita, homofóbico, racista, filho da puta. Quinta vez no mesmo mês. Já estava com ele por aqui. Fecho a porta do micro-ondas com sua cabeça prensada no batente. Quem dera... Contrarregras da burocracia. Um olho aberto e outro fechado na vizinhança febril. O mundo dos infernos corporativos. Já não se pode falar, o vômito vem à boca. É preciso aguentar o gosto ácido e azedo corroer a língua; calado, quieto, cara de paisagem; um estar no virtual. ali presente. Virtual é muito melhor. Quando o sangue sobe aos olhos, cospe-se o sapo, manda-se à puta-que-o-pariu ou à merda.
A esposa, aflita com o casamento, liga preocupada com o horário do cabeleireiro: - Calma, meu amor, tudo se arranja! Vai, vai dar tudo certo! Os olhos cheios de impaciência buscam qualquer refúgio nos objetos da mesa de escritório: um grampeador velho, o porta-lápis, a proteção de tela do computador... Não sei como esses programadores fazem coisas incríveis assim, minha proteção de tela preferida é aquela do aquário. Simplesmente perfeita! Sim minha vida, acho que sim, você deve fazer relaxamento, tingimento, e outros mentos que forem necessários... Quero que você seja a madrinha mais bonita do casamento, tá bom? É preciso superotimismo, as coisas vão mudar... Ou não, não é? O esquema semiesférico deve completar o seu ciclo. Conversar, enfrentar, transgredir... Não! Isso é antieducativo, antirrentável, antitudo! Não amor, estava aqui falando sozinho... Pedicure, manicure, pelecure, massagencure, tudo que você quiser, princesa... Claro que sim! Não, não estou ironizando; cutícula? Lógico! É só uma brincadeira. É isso... Uma brincadeira.
Esconde-esconde, pega-pega... Ele quer brincar, então? Quem persegue, deve ser perseguido também, quem procura, deve zxsse esconder também, não é assim? As regras são feitas pelo próprio grupo de jogadores, todos devem segui-las. “Só quem brincou um dia de bambolê sabe ter jogo de cintura”, meu amigo costuma dizer. Liderar não é isso? Ter jogo de cintura, jeito para levar a situação para esse ou aquele lado; conduzir o companheiro por um ou outro caminho; propor um brincar de pular corda ou cabo de guerra, dependendo do conflito, da dificuldade, do enrosco, do encontro ou desencontro?; às vezes é preciso até mesmo um morto-vivo, passa-anel ou mãe da mula. Autoinstrução! O observar e aprender com o jogo: é jogando que se aprende! Vamos jogar! Abrir o peito e estar sensível, receptivo, pronto, presente; ativo e reativo; abrir os braços e acolher, ouvir, propor; rever, ampliar.
Malditos prazos! Contas, processos... Penteado permanente no cabelo, sempre provisório. Basta uma reles garoa para as mulheres irem ao desespero. Projetos por fazer... Detesto essas garoinhas besta, amor! Batata! Quero isso pra hoje! Você já terminou aquele projeto que eu pedi? Amor, dá pra você me levar na Dulce, vou fazer depilação, tudo bem? Preciso de um novo relógio; prefiro pulseira de aço, as de couro não duram nada, além disso, sujam, rasgam, se esfolam, e assim vai. Que desgraça a minha, aflito pelo tempo e não vivo sem um bendito relógio. O fato é que já passou da hora de um relógio novo. Há mulheres que se sentem nuas sem um par de brincos, ou um colar, no meu caso é um relógio. Precisa ser bonito também, gosto dos grandes. Amor que tal a gente combinar de cada um dar um relógio pro outro nesse aniversário de casamento... Mas tem que ser surpresa! Quero dizer... Qual o relógio é que vai ser a surpresa. Lógico querida, vou adorar! O homem é o escravo do tempo. Como diz o poeta: Passa, tempo/ Bem depressa/ Não atrasa/ Não demora/ Que já estou/ Muito cansado/ Já perdi/ Toda a alegria / De fazer/ Meu tic-tac/ Dia e noite/ Noite e dia.
Você é homossexual? O pervertido, filho-de-uma-mãe, para não dizer mais... NÃO! Vou dizer sim! Aquele FILHO DE QUENGA, perguntou com um meio sorriso no rosto, como quem está brincando. Brincando uma ova! Tem medo de falar o que pensa, isso sim! Eu é que sempre achei que você era bicha; continuei no jogo de faz-de-conta-que-estou-brincando. Sem essa de engolir sapos, mandou aqui, devolvo ali, sou bom no pingue-pongue. Ficou vermelho, desconversou, engrossou a voz, e bateu nas minhas costas. Vá-lá seu fanfarrão! Você é um gozador mesmo, hein? Sou? Pensei calado e feliz. E calado respondi: - E você minha fonte de inspiração, seu verme.
Acho que Yoga seria um bom remédio para o meu destempero. Não engulo esse jogo de desfaçatez. Há de ser Ashtanga Vinyasa Yoga, bastante respiração, força e torção. Tai-chi-chuan seria melhor? Controle da mente e do corpo; exercitar os músculos: bíceps da paciência, tríceps da tolerância, compreensão, escuta desinteressada; aprimorar certos movimentos corporais apropriados para o dia a dia: aceno de cabeça, para cima e para baixo; levantamento de positivo, movimento repetitivo e curto no ar, jogar bola de gude também é bom pra isso, exercita o polegar a se lançar para frente. Experimente, é só fechar a mão como se fosse dar um murro, mas o polegar deve entrar e ficar quase embaixo do dedo indicador (como que querendo sair sabe?), mas só deve ser lançado no momento certo, arrume uma bolinha de gude e treine. No começo é difícil, parece fácil, mas não é, logo você domina e lança a bolinha no longe. E que tal Pilates...
Que droga é o natal! Pior momento na vida de um funcionário infeliz. Explico: o senhor do rebanho está sempre rodeado de puxassacos sem vergonhas, pois é, e que continuamente querem agradar o ser supremo; assim, logo inventam um amigo secreto, e outras baboseiras do gênero. Amor, já pensou se a gente fosse passar o Réveillon em Olinda este ano? Claro meu amor! É tudo que mais quero! Não seria uma delícia, meu amor? Claro minha vida! Só que vou trabalhar no dia 31 também, esqueceu? Ah, meu deus! Não há suplício maior! Pudesse eu, daria uma passagem só de ida para os tempos da proto-história para o Mr. Pedestal. Tempos de não-linguagem verbal, do rosnar e estufar o peito. Pensando bem, não tão diferente dos nossos dias. Diferente apenas pela soma da ironia e sem-vergonhice muito comum nos nossos dias. Lá, o algoz era conhecido e declarado. Aqui, um eterno brincar de rouba bandeira; com um agravo, claro, roubasse sem que o outro saiba da brincadeira. Falácia! Ah, amor! Não seja tão cruel assim... Você não está exagerando? Pense bem... Lógico que estou exagerando, estou superestimando este filho-de-uma-égua. No fim das contas, o que seria dele nos tempos dos metais? Afinal de contas o virtual é muito mais poderoso do que a matéria, do que o palpável:
Universo Virtual
O imaterial,
materialização
nas redes sociais,
e-mail, instant message
blog, podcast e chat
fotolog, facebook, youtube
siga-me no Hi 5, Badoo, ou Orkut
altere seu perfil, insira uma imagem
atualize, entre no fórum
Um estar próximo
distanciado.
Leia, comente, avalie
participe da campanha
deixe seu recado
ativo, off-line ou ocupado
conecte-se e bata um papo,
deixe sua mensagem.
Caixas de entrada lotadas
fóruns desatualizados,
homepages e weblogs,
plataformas antieducativas,
relações precarizadas.
Nossa, querido! Que versinhos lindos... Imagina, minha flor! Rabisquei essas bobagens só para passar o tempo, nem está acabado... JÁ TERMINOU O PROJETO??? PELO VISO VOCÊ TEM TEMPO DE SOBRA, NÃO É JOSIAS??? ATÉ POEMINHA ANDA POSTANDO NO FACEBOOK, NÃO É MESMO??? ESPERO QUE NÃO SEJA NO HORÁRIO DE TRABALHO! 

sábado, 15 de outubro de 2011

QUE MACHADO ME PERDOE


Há certas coisas na vida da gente nas quais passaríamos uma borracha, se assim fosse possível. Certas histórias que nunca deveriam ser contadas. No entanto, essa pode ser minha última chance de tentar entender o que realmente se passou naquela noite. Algo confuso e inesperado que me enche de vergonha; o que prova que a fronteira entre a razão e a loucura é uma membrana frágil e invisível. Conto essa história, portanto, para poder organizar as ideias e encontrar o momento ou motivo que me trouxeram até aqui.
Pode ser que você não acredite, mas tão certo como aconteceu é o fato de eu estar agora escrevendo estas palavras. Peço desculpas, porém, se, por conta da memória, que sempre apronta das suas, a história me vier difusa ou desordenada. Lembranças são como miragens, você acredita que está vendo, se aproxima, e ela some, surgindo depois novamente; são escorregadias e peraltas.
O dia não havia sido leve sobre meus ombros. Não estou exagerando e nem sou de reclamar, é só uma constatação. Desde os dez minutos pós-café-preto-e-três-fatias-de-pão-sovado, às oito e quinze da manhã, até o cair da noite, por volta das 19 horas, com exceção de um breve lanche às duas da tarde e duas ou três vezes que parei para esticar as pernas e fumar um cigarro, me dediquei a corrigir textos dos meus alunos - nada menos do que cento e vinte textos to tipo dissertativo-argumentativo do Ensino Médio e sessenta artigos de opinião dos oitavos anos. Passados os primeiros, sei lá, vinte textos, vamos dizer, com os quais ainda me divirto, exaspero ou desespero, baixa o funcionário público com sua mesa lotada de documentos por examinar e despachar. É lógico que, mesmo assim, como era de se esperar, não dei conta de toda tarefa. Como dizem por aí: são os ossos do ofício. E quantos são os ossos que precisamos roer nessa profissão. Loucos os desavisados que entram nessa vereda por pensar que professor trabalha pouco e ganha bem. Mas isso é outra história.
Empurrando o restante do trabalho para debaixo do tapete do amanhã, resolvi tomar uma boa ducha e relaxar. Depois do banho tratei de abrir uma garrafa de vinho, excelente remédio para aliviar o estresse.  Era preciso voltar ao normal primeiro, ou fugir daquela realidade de sala de aula que sempre salta os muros da escola e invade minha casa aos finais de semana. Assim, foi com um prazer enorme que deliciei uma taça de Cabernet Sauvignon, uma boa safra chilena, da cidade de Puerto Varas, ou seria Talca? Não me lembro ao certo, da qual possuía algumas garrafas no armário. Essa primeira taça foi sorvida rapidamente, devido à ansiedade. Então tomei outra, e depois mais outra, desta vez mais devagar, saboreando de verdade.
Há tempos não vejo um bom filme e minha lista de filmes por assistir está enorme. O último foi “Uma Mente Brilhante”, filme inteligente e marcante, recheado de cenas fortes, impactantes. Uma delas é a cena em que o pobre matemático percebe a loucura de estar falando com seres imaginários, revelando toda a frustração ao perceber que tudo era invenção sua. Recorrendo a lista, matava três coelhos com uma cajadada só: relaxar; aplacar meu desejo de ver uma boa obra de arte; diminuir a lista de filmes pendentes.
Entre um gole e outro, na dúvida entre um Almodóvar ou um Wood Allen, ouço baterem à porta. Esperei. Uma batida suave, porém firme e ritmada, voltou a insistir. Deixei os DVDs na estante de mogno, lembrança de minha mãe, repousei a taça sobre a mesinha de centro, e fui ver quem era. Engana-se, contudo, se pensa que fiz isso na intenção de acolher alguém em minha casa. Bem se vê que não me conhece mesmo. Algumas pessoas, que convivem com gente a semana inteira, às vezes centenas delas, como é o meu caso, posso afirmar, só desejam encontrar a própria sombra no aconchego do lar. Sou desse tipo de gente, não gosto de receber visitas, principalmente vendedores, pedintes, testemunhas de Jeová e aqueles amigos que só têm hora para entrar na sua casa, mas nunca para sair. Mesmo amigos queridos não escapam, sempre tenho uma desculpa. Talvez por isso tenham me apelidado de Ermitão, “Mister” Ermitão, para parecer importante. Pois bem, em situações como a daquela noite, minha estratégia é, simplesmente, ficar quieto e observar pelo olho mágico, até que a visita indesejada se vá. Como a casa estava na penumbra e não havia ruídos, não haveria problema algum, seria questão de um ou dois minutos até que a pessoa desistisse. Minutos que, verdade seja dita, muitas vezes duram um eternidade. Mesmo assim, nada paga nosso sossego, não é mesmo?
Até aqui, como pôde perceber, tudo normal. Minha memória colabora feito testemunha fiel e solícita, como que buscando ajudar na solução de um importante caso policial. Verdade é que não bebi muito até ali, havia dado cabo apenas do primeiro chileno da noite. O que aconteceu a partir daí é que são elas. Se quiser continuar a ler, verá que coisas incríveis irão acontecer ainda. Contudo corro o risco de que não me leve a sério, ou de que ache que não bato bem do juízo, ou, ainda, que o cansaço e o álcool são os responsáveis por certa ilusão dos fatos, ou parte deles. No entanto, posso afirmar que tudo aconteceu realmente, como descrevo a seguir. Não lhe culpo, todavia, se estiver enfastiado dessa história. Não se sinta obrigado a perder seu tempo. Aconselho-o mesmo a procurar algo mais importante a fazer, afinal, o que vou contar pode não ser grande coisa no final das contas. De mais a mais, há sempre algo urgente e necessário em que se empenhar. Talvez seja preciso dar banho no cachorro, engraxar os sapatos, lavar o carro, ou, ainda, postar valiosos comentários em sua comunidade virtual. Entretanto, caso tenha paciência para ir um pouco adiante, peço que me acompanhe nas próximas linhas.
Como sempre faço, dei uma espiada pela veneziana de plástico da cozinha, há ali um cantinho discreto: vê-se de dentro sem ser visto pelo alguém de fora. Meu objetivo era ver se reconhecia quem era o causador daquele incômodo repentino. Dali, pude ver um homem mediano, mais ou menos da minha altura, e idade já um pouco avançada, que esperava uma resposta ao pé da porta. O curioso é que trajava uma bela casaca inglesa preta e usava cartola. Movido pela curiosidade, fui a té a porta e me aproximei do olho mágico tentando descobrir quem era a tal figura. Sem sucesso, resolvi abrir, já que parecia tratar-se de gente de bem. Poderia até arriscar ali havia pessoa de grande importância. Há homens que ainda conseguem causar boa impressão pela veste que trajam, outros nem assim. Ao vê-lo tive uma forte impressão de conhecer aquele rosto, mas ponderei estar enganado. Começamos essa conversa que transcrevo tal qual sou capaz de lembrar, desejando que ela nunca tivesse acontecido.
- Boa noite! Chamo-me Bento, seu criado.
- Boa noite! Respondi reticente. Tenho a impressão de conhecê-lo de algum lugar...
- Com certeza me conhece. Posso lhe ajudar. Os mais íntimos me chamam de Casmurro, Dom Casmurro, para ser mais claro. Isso lhe diz alguma coisa agora?
- (Surpreso e pasmo) Claro, Sr. Bento. Como não haveria de me lembrar de pessoa tão famosa e ilustre. Conheço sua história e digo que sinto muito por tudo que passou.
- Não se preocupe. Tudo é passageiro nesta vida. É como diz o poeta “Ainda vai levar um tempo, pra fechar o que feriu por dentro”, mas lhe asseguro, sobrevive-se. Posso entrar?
- Por favor, desculpe a falta de educação. É que eu não esperava...
- Você sofre do mesmo mal que eu: És um solitário!
- Gosto de estar só, apenas isso.
- Não é pouca coisa, acredite. No começo, logo depois da partida de Capitú, pensava o mesmo. O tempo passa e você vai ficando cada vez mais ensimesmado e acaba enclausurado no seu microcosmo.
Parecia querer me dar um sermão naquele momento, lembrou-me meu pai. Talvez pelo ar de importância que procurava colocar em sua voz. Tratei de abrir outra garrafa de vinho ali mesmo na sala, depositando o saca-rolhas sobre a mesinha. Sem perguntar, como que adivinhando um desejo natural, ofereci uma taça ao elegante senhor, que não se fez de rogado. Em pouco tempo já esvaziávamos a segunda garrafa. Tínhamos muita sede e havia muito a conversar. Falamos de diversos assuntos, desde moda, já que lhe declarei minha surpresa ao vê-lo vestido daquele jeito, até tecnologia e política. Um homem sábio estava ali à minha frente. As horas foram avançando, o converse se desdobrando e o vinho nos deixando mais falantes, indiscretos e agressivos até. Como não podia deixar de ser, eu tinha que lhe perguntar sobre Capitú. Afinal, desde as descrições de Machado, foi a menina-mulher que figurou no meu imaginário como uma deusa do amor, na meninice gostosa e sensual de suas brincadeiras e ousadias, desde minha adolescência. O primeiro beijo, que ela roubou do tímido Bentinho, me fez fechar os olhos e sentir, nos meus próprios, os lábios quentes daquela pequena ninfa; pude ver seu sorriso maroto e os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, como narrava o velho Casmurro. Mas o assunto era delicado. Comecei elogiando...
- Sabe, Sr. Bento, gostaria de dizer que escrever sua história foi um gesto muito digno e generoso. Poucos teriam coragem de revelar aspectos tão particulares da relação de vocês dois, como você fez.
- Gentileza sua. O que fiz foi antes um desabafo do que outra coisa.
- Você deve ter amado muito aquela mulher, não é mesmo?
- Tanto que seria impossível descrever. Eu seria capaz de contrariar minha própria mãe, caso ela não desistisse daquela ideia absurda de me fazer padre, pode isso? Quando criança nem ligava, mas depois que Capitú entrou na minha vida meus planos eram outros.
- O que me intriga é o fato de uma história de amor tão bonita ter acabado em tanto sofrimento e separação.
- É, meu rapaz! Se nem eu consigo aceitar isso...
- E o pior... (arrisquei) sem nenhuma razão palpável para isso, sem nenhuma prova real sobre a traição... (Cutucando a onça com vara curta... o que não foi, definitivamente, uma boa ideia.)
- Sem provas! O velho Casmurro se exaltou. Sim, ele já estava bem velho, mas, tão logo entramos nesse assunto, demonstrou tanta energia quanto um jovem de vinte anos.
- Bem se vê que você é um desses que dizem conhecer a obra pela leitura da primeira página - Continuou.
- Calma! Não quis ofendê-lo. Conheço bem o livro, já o li algumas vezes, além de críticas e artigos científicos de especialistas. Além do mais, fiz meus alunos do colegial lerem também, fizeram trabalho inclusive. Se digo isso, é porque você mesmo me levou a pensar assim.
Ao falar isso, fiz o Sr. Bento franzir a testa e irritar-se.
- Como assim? Isso é uma pilhéria! Deixei bem claro através de situações, evidências, mencionei até os olhares lânguidos daquela ingrata, que flagrei diversas vezes, repousando naquele que era meu amigo, o Escobar. O que mais quer de mim?
Era preciso mais vinho para acalmar a fera, estava visivelmente perturbado por minha acusação. Apesar de não gostar do seu tom arrogante e imperativo, eu sabia que deveria perdoá-lo, já que o assunto lhe era tão íntimo e dolorido. Pensei em recuar, mas também tenho o defeito do orgulho, e segui em frente. Na verdade não fui movido só pelo orgulho, não. Fui movido também pelo ciúme. Isso mesmo! Ciúme daquele que havia tido o coração da minha querida Capitú; daquele que não dera valor a tão maravilhosa mulher que lhe tinha dado a mão por esposa; daquele que a fizera sofrer humilhações e abandono. 
- Sabe, Sr. Bento, qualquer jovem que lê o seu livro aprende a amar a Capitú também junto com o “Bentinho”, entende?
- Entendo. Consentiu com a cabeça.
- Pois bem, (Partindo para a ofensa) dessa forma a gente termina por achar que você surtou de ciúmes, sem ofensa.
- Concordo! (Exaltando-se um pouco) Surtei mesmo! Mas com toda razão, não acha? (Recompondo-se, na tentativa ainda conquistar minha confiança).
- (Sem dar brecha) Na verdade, não! Explico. O que você chama de evidências, para muitos não passou de coincidências. Veja um exemplo: você tenta nos convencer de que uma prova da traição é que seu próprio filho, o pequeno Escobar, é filho de seu amigo por se parecer demais com ele, não é verdade? Mas esquece que você mesmo nos falou da semelhança absurda que havia entre a Capitú menina e a mãe de sua melhor amiga, fato que você mesmo presenciou em visita a casa da moça e nos relatou com admiração. Como se vê, são dois pesos e duas medidas, no caso da Capitú você vê coincidência, já no caso do seu filho se tratava de prova irrefutável. O mesmo pode ser dito de outras provas ou evidências apresentadas em sua narrativa.
Neste momento, senti-me dono da situação. Na verdade, já tinha ido longe demais e é certo que deveria ter parado ali. Assim talvez suscitasse alguma reflexão no pobre coitado. Mas não, aí é que me senti no direito de rasgar o verbo. Tivesse eu calado e as coisas não teriam tomado rumo tão desolador. Ah, Baco! Deus da perdição, da desordem, do vinho e da orgia! Como celebrastes minha desgraça aquela noite!
- (Prossegui) Digo mais, sua tentativa de incriminar aquela mulher não surtiu efeito, eu e a maioria das pessoas que conheço sabem que Capitú é uma verdadeira santa!
Quanto mais vinho tomava, mais resultado avesso ao esperado. O homem foi ficando cada vez mais aborrecido com meus argumentos. Minha última frase foi o estopim: ele se levantou da poltrona e vociferou com o indicador em riste; disse-me desaforos e mandou que cuidasse de minha própria vida; aos berros, dizia que eu não tinha a menor ideia do que ele havia passado, e outras coisas que não lembro exatamente agora.
Já embriagado e transtornado com aquela reação violenta daquele homem, pedi as estribeiras e joguei em sua cara as covardias cometidas com o pobre filho e com a própria esposa, mandando-a para a Europa, para viver solitária e triste, longe de tudo e de todos.
- (Dando uma gargalhada nervosa e agressiva) Aquilo foi uma metáfora, seu idiota! Você, um professor de literatura, tão experiente, não foi capaz de entender a metáfora? Bem se vê que és um professorzinho de merda!
- Como assim? Perguntei incrédulo.
- (Gritando, no auge de sua insanidade) EU MATEI AQUELA TRAIDORA! MATEI! MATEI! MATEI A PROSTITUTA MISERÁVEL! ENTENDEU AGORA???
Espanto, surpresa e ódio. Ao ouvir aquilo, minha desgraça foi completa. Saí de mim, perdi totalmente o controle, gritei histericamente repetidas vezes: “ASSASSINO!”, “MENTIROSO!”, “ASSASSINO!”. Verbo e ato, minha mão encontrou o saca-rolhas, na mesinha de centro que separava nossos corpos, e passou a sacudi-lo no ar, ameaçadoramente. Naquele momento ele fez  o que nunca deveria ter feito: me deu um tapa  no rosto que, de tão forte,  posso sentir ainda agora meu rosto queimando. A resposta foi de pronto, o saca-rolha mergulhou no peito do pobre velho diversas vezes, até que a casaca inglesa estrebuchasse no chão da sala, e o preto do tecido fosse, pouco a pouco, se encharcando do líquido escarlate, repousando logo em seguida sem respiração. Contudo, não pude sufocar seus gritos de dor e desespero.
 No auge de nossa desavença, havíamos perdido a noção de tempo e espaço. Assim, não tardou para que os vizinhos e a polícia descobrissem a tragédia. Eu estava parado ali na sala, na frente do corpo, perplexo como quem acorda de um pesadelo desejando que tudo fosse um sonho, completamente absorto na minha insanidade, quando me levaram.  
Hoje, nesse cubículo fétido, sujo e gelado, nesta pequena cidade de Queimados, isolado de tudo e de todos, percebo o real motivo de minha cólera: matei por amor.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Quem dera assim fosse... exercício de narrativa com personagem e uso de palavras com prefixos ou sufixos emprestados

Quem dera assim fosse...

O barulho do bater na borracha do sapato era ouvido por quem passasse em frente à loja. A alegria do martentelar era orquestrada por seu José, que habilmente apertava daqui e dali, batia, esfregava o couro liso e escorregoso, enfiava de novo aqui e puxava ali, e pronto, mais um cliente que logo ficaria feliz ao ver o sapato velho, novo, de novo. Há quarenta anos era assim José. Seu José Sapateiro, como chamavam. Não havia na região ninguém com maior destreza. A música clássica na velha vitrola completava o cenário sonoro sugerindo ao maestro da borracha o ritmo do labor. Mãos, sapatos, ferramentas e apetrechos bailavam, indo de lá para cá, se entrelaçavam e combinavam. Era de uma energia descaracterística para seus setenta anos, vitalidade admirável.
Sua loja era um microcosmo da alegria. Terminaria seus dias ali. Com certeza! Não nascera para depender de ninguém. Muito o contrário. Um engenheiro e dois doutores haviam sido criados e educados com o fruto dos sapatos. Era também a lembrança da amada que se despediu dez anos antes. O amor, sentimento costumoso em sua alma, não o deixava dormir sem um ‘boa noite’ à saudosa companheira. Tinha orgulho do ofício e da fama que cultivava. Ali se sentia bem, era onde gostava de estar. Não era muito espaçoso, mas bem aproveitado. Ao fundo, uma prateleira grande recebia sapatos prontos, a vitrola amiga, a cola e uma caixa azul com pedaços de couro; na entrada, o balcão corria de um canto ao outro, lá descansavam o talão de pedidos, um porta canetas com duas ou três delas, e uma caixa aberta com uma porção de encomendas espalhadas; os sapatos que iam chegando eram depositados com o respectivo nome de seus donos em uma prateleira baixa que ficava à esquerda de quem entra; no meio da loja, algumas ferramentas, um esmeril, uma bigorna e uma pequena prensa. Aquele era o universo de Seu José Sapateiro.
Abria a loja bem cedo todos os dias, sempre as sete, pontualmente. Acordava antes das cinco para o ritual matinal: o banho morno; um café forte; o bom dia da amada; as notícias no rádio; e o vestir-se para a lida. A velha porta da loja rangia até o alto, mas não se atrevia a barrar o caminho. O corpo franzino, curvado, se esticava e empurrava, levantando a cansada e preguiçosa porta. Isso lhe cutucava a tendinite no braço direito. Preciso concertar essa joça, resmungava, como todos os dias. Logo a seguir começava sua performance que só era interrompida ao meio-dia, para o almoço. Este era um momento sagrado para seu José, que, depois de baixar a porta da loja, seguia para casa onde Dona Gê, a vizinha, lhe deixava o prato de comida posto a mesa. Não era caridade, ele lhe pagava religiosamente. Duas vezes por semana ela ainda limpava a casa e lavava a roupa. Era tudo que ele precisava. Às vezes, ela o esperava com o pretexto de temperar a salada, fazer um suco, coisa assim, e puxava conversa. Tinha dó do pobre sapateiro, Homem sozinho esse seu José, meu Deus! Ela pensava, Poderia muito bem viver com um dos filhos. Mas não! Pode isso?! Três filhos bem criados... bem de vida... e ele fica aqui, nessa vida sem graça...?! Parece que tá se castigando... Mas a mulher se admirava mesmo era com a memória que ele tinha, lembrava o nome de cada cliente quando conversava com ela. De sua loja fazia questão de chamar pelo nome e cumprimentar cada um que passava por lá, como ela mesma já tinha visto.
Voltava para casa sem se distrair pelo caminho. Não visitava os filhos, nem amigos, Passe por aqui depois da loja, os filhos viviam dizendo. Não tinha vontade. Ao contrário do corpo ativo, decidido e forte com seu martelo a bater, agora voltava cansado, sem energia. Como todos os dias. A casa era pequena, um pouco escura, poucos móveis. Uma pequena mesa de madeira, uma cadeira e um fogão de duas bocas povoavam a cozinha, no quarto podia-se perceber a cama de solteiro, sobrando na penumbra. Não desgostava de quadros, mas não os tinha. Também as plantas não lhe desinteressavam, mas também não lhe agradaria cuidar delas. Não perdia seu tempo com tais coisas. Sentava na cadeira e esperava o tempo passar, não tinha fome, quase nem sede, enrolava um cigarro de palha e observava a fumaça desaparecer no ar. Era em casa que se lembrava do reumatismo. Definitivamente, ninguém reconheceria ali o José Sapateiro de horas atrás. O maestro dos consertos de sapato. Uma tristeza profunda lhe tomava conta. A solidão costumeira o esperava. O retrato da mulher era a única moldura que pendia numa parede de sala e quem lhe fazia companhia no gastar das horas. Devia mesmo ser castigo, como pensava a vizinha. Não aceitava a partida da mulher. E ficava ali. Depois de um tempo comia e se deitava.
Naquele dia, não trabalhou pela manhã. Foi ao médico. Não pelas dores nas costas e o reumatismo que já eram habituais, convivia bem com elas. Mas por uma dor aguda na região do estômago que começou a tirar-lhe o sono recentemente, e estava piorando. A princípio não deu bola e tomou alguma coisa para aliviar. Na manhã da segunda-feira, porém, a saliva escarlate lhe preocupou. Não há de ser nada, não pode ser, Não posso ficar sem trabalhar, Virar um imprestável, Preciso falar com o doutor João, decidiu. Seu maior pesadelo era esse: um dia ter a sensação dissaborosa de que não valia mais nada. Isso nunca.
Do médico à oficina, pelo resto da tarde. Voltou para casa as seis, como de costume; sentou-se na mesma cadeira, como todos os dias. Entretanto, seu José Sapateiro, naquele final de tarde, trazia algo especial no olhar. O olhar perdido e profundo, que carregava aquela tristeza desorientada e calada de todos os dias, dava espaço agora a uma quase certeza, uma quase esperança. Já estava cansado daquilo tudo, da solidão, da gasteira da vida cotidiana, da saudade doída. Apesar do ofício e da alegria que sentia na loja, já se enojara da dor da reclusão, sem poder abandoná-la, era seu escravo. Um martírio. Não queria continuar aquela vida de lamentação pela mulher que se foi. Depois de tanto tempo, naquela tarde, bendita tarde, soube que o descanso estava próximo. No consultório, com toda cautela de quem teme pela fragilidade alheia, Dr. João contou sobre a flor no estômago, uma flor grande e vermelha, até ele ficou espantado quando viu o exame, pois era realmente uma coisa aquela flor. Não havia esperança... E isso lhe trouxe alívio.
À noite, a dor veio caprichosa e insensata. Mas o pobre homem não estremeceu. Pelo contrário, já a esperava, como advertiu Dr. João, Qualquer hora dessas, ele disse, Pode acontecer... Resolveu tomar um banho, e, como não era costume, assobiou uma melodia qualquer enquanto fazia a barba, colocou um pijama novo que guardava numa caixa, comeu com alegria e deitou-se mais cedo do que o costume, não sem antes beijar o retrato da esposa, que colocou ao pé da cama. Estava pronto. Colocou uma sinfonia na vitrola, Mozart, como todas as noites, e deitou. Um olhar ansioso e pensativo fitava o teto, passeava por manchas do reboco, e em seus ouvidos a sinfonia da borracha juntava-se a de Mozart. Assim ficou por um tempo. Os olhos cansados foram se fechando. À sua frente viu surgir a casa de infância e se viu sozinho no sótão, a espiar quem passava na rua adiante, uma solidão quente e gostosa lhe aguçou a memória daqueles tempos esquecidos, experimentou uma preguiça prazerosa, que lhe enchia o ser. Seria dali o germe da solidão que lhe comeria anos mais tarde? Ouviu então o pai lhe chamando para a oficina. Foi ali que aprendeu o ofício, a custo de muitos safanões, e que escutou inúmeros conselhos do pai, tinha que dar o seu melhor para fazer o serviço bem feito e agradar os clientes. Já agora, distante, era uma lembrança boa. Fechou os olhos e ao abri-los estava na calçada em frente à loja de sapatos, ao lado o pai, já grisalho, a mulher, a futura esposa, e alguns amigos que juntos comemoravam a inauguração da Sapataria do José. Não podia estar mais feliz, ali pode reviver aquela sensação de orgulho e conquista do sonho. Isso não durou muito, numa parede surgiu um grande espelho, as crianças entraram correndo para olhar a roupa nova, estavam se preparando para a missa do domingo, Não demorem, gritou a mãe, que estava linda como todo dia de missa, ela costumava dizer que o domingo era o dia mais bonito da semana, Nossa! Como você está bonita, meu amor! Por que você me olha assim, parece que nunca me viu? Acho que nunca te vi assim... Passou pela porta e pôde ver os amigos no grande salão, todos em festa, em sua festa, abraços e felicitações pelo aniversário, setenta anos, reconheceu seus clientes ali, sobravam elogios pelo homem e pelo ofício, as palavras lhe faltavam, sentia-se realizado, completo, seguiu caminhando e viu ao longe sua amada, mais linda do que dia de domingo, acenou com alegria e gritou Me espera... Quero te abraçar... Estou sempre te esperando, vem...  José correu e correu, correu por colinas e descampados, passou por várzeas e morros, correu sem parar e descansadamente, sentia-se renovado quanto mais corria ao seu encontro, ao final de tanto correr chegou a um jardim belo e perfumado e então a abraçou, abraçou forte, sem pressa, e esperou, esperou o corpo sentir o calor do abraço, a textura dos tecidos, a delícia do beijo suave... Então José Sapateiro suspirou, um suspiro profundo e incansável, que fez a alma desgarrar do corpo velho e cansado e se juntar àquela que há tanto ansiava.
Quem dera assim fosse meu último suspiro.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Exercício de Narrativa – Foco: diálogo sem marcações - Fábula

O Macaco, o Lobo e a Onça
“Quem fala o que não deve, tem que levar porrada”. A maldita frase não saia da cabeça do Macaco Micala, bicho danado que deitava a falar pelos cotovelos quando se sentia importante. O dono da “maldita” era o Lobo Rosnildo, e o motivo de tal esculacho, que entrou pelos tímpanos do pobre mico, como ameaça efetiva, foi que o tal lobo soube de uma tal falação do tal macaco. Falação, falácia, infeliz, para o pobre diabo. Ao meio-dia estava marcado o encontro para uma conversa, que se ouvia das bocas dos demais bichos, nada amigável. Agora só restava rezar para um milagre acontecer, o dito não podia ser desdito, pelo contrário, só aumentado, quem conta um conto...
- Ah, meu deus!!! O qui vô fazê agora meu Santo dos Micos Dourados? Me disseram que o Lobo Rosnildo está azedo que só, disse qui eu num passo do meio dia... qui vai acabá co’a mia raça... tudo isso, só por causa de uma brincadeirinha... Ai, meu Jesus Quistinho... Ai, ai, ai. Óia quem vem ali: a Onça Todapintada. Só ela podi mi salvá; peciso pensá im alguma coisa... Pensa! Pensa! Pensa... É isso! (tendo uma luz, e virando para todos os lados...) Vamo, vamo, temo que fazê alguma coisa! Vamo todos! Rápido! Ora, que desespero é esse seu Mico Micala? Dona onça! Que bom que chegô, se nóis não se mexê, vamos todos morrê! Vamo dona onça, quero dizer: majestade Todapintada. Alto lá, seu macaco, vamos para onde e por qual motivo? Ainda num sabe? Pois o Rosnildo disse que todos os bichos tem que saí da floresta purque os homens vão botá fogo nela. É mesmo? E quem é esse tal de Rosnador? Num é Rosnador, não, é Rosnildo: o lobo. Que dizer que é só um lobinho assim... soltar um boato pela floresta, e pronto? Não é boato, é verdade, eu mesmo vi alguns homens olhando a floresta ontem; num acredita? E se acreditasse? Acha que eu ia sair arrancando meus cabelos feito um macaco que-não-se-penteia como você? De forma alguma, meu caro colega. Não pense num desaforo desses. Deixe de bestagem! Pois então é valente? Vai resistir? Digo que não arredo o pé daqui! Pois agora tô mesmo sem rumo! Então me diga porquê Sr. Abestado? Deixa pra lá. Deixar para lá o quê, Mico? Eu mesmo num gosto de fofoca. Pois se não contar agora, não vai precisar mais abrir sua boca para o resto de sua vida. Num é nada de mais, num vale a pena a sinhora perdê toda essa sua sabedoria... Sabe que sempri li admirei, num sabe? Sempre com bom caminhar, boa comida, cum essas pintas cheias de charme... Vamos seu moleque, você está me enrolando! É que o Lobo Rosnador, quero dizer o Lobo Rosnildo, disse que ia ficar por último, já que (cutucando) é o animal qui num tem medo de nada qui na floresta... e qui todos os outro, que num chegao aus péis dele, deviam saí primeiro; é claro que na hora eu já defendi dona Todapintada; disse que cê é o animal com mais bravura; com mais valentia; que num tem medo di nada, nem di ninguém; e que acaba com qualqué metido a besta que entra na sua frenti; foi isso mesmo o que eu disse, falei demais? Nem uma vírgula a mais, meu caro, é isso mesmo. Não tem medo nem da morte? Asseguro, simplesmente, que não tenho medo de nada. Pois já sabia e lasquei essa tamém! Você não errou, meu jovem, pode ter certeza! A senhora morte já tomou chá comigo certa vez, se quer saber. (consigo mesmo, rindo por dentro) Ah, claro que sim... nooosa! e como.... já tinha mi isquecido cum quem tou falano... me disculpi. (com a bola cheia) E o que foi que o tal do Rosnante falou depois disso? Que eu não passava de um mico filho de um burro, pois... Dexa pra lá, dona Onça! Num foi nada! Só bobage de quem tá disisperado! Se é bobagem decido eu! Que diabos mais ele falou? Já estou ficando sem paciência, não proteja esse lobo, não! Tá bom, ele disse...que... ele... (apimentando) era o tal do pedaço, tá dito! Falei! Pediu pra falá, falei! E tem mais, (no: ou tudo ou nada...) que faria picadinho de qualqué onçinha di meia tigela que si metesse em seu caminho.  (perdendo o controle...) Isso é verdade, amigo Micala? Posso cair mortinho agorinha, se num fô verdadi. Verdadi das boa! Tão verdadi quanto eu tá vendo a senhora qui na mia frente. (fisgada..) Pois tudo que eu queria agora era encontrar esse bicho pra acabar com ele; mas ele não há de escapar; nem a queimada livra esse fulano das minhas garras! Ah, que ódio desse Lobo Rosnento! (o melhor amigo...) Calma dona Onça... num carece preocupação, não; assim perde a razão; vai se fácil a sinhora encontrá o sujeito... ele falô que vem me procurar agora meiu-dia, na pedra da Gruta do Tronco, pertim do rio de baixo, sabe? Ele vem buscá sabê se já dei o recado pra ocê... porque num quer ver sua cara por perto. Ah, é? É? Não diga? Já disse! Pois ele não vai mesmo ver minha cara, vou acabar com esse sujeito antes que ele se dê conta do que aconteceu. Pois então vamo cumigo que vai sê sua chance. (Sentando na pedra da Gruta do Tronco...) Fique ali, atrais daquela árve, i ispere. Eu vou ficá beim aqui, e quano ele se aproximá... Não precisa nem continuar, é aí que a festa vai começar. (confabulando...) quando o Lobo Rosnildo apontá ali naquela encruzilhada, e vê que tou aqui, vai vim correno e babano... aí, subo naquela árve e fico assistino o ispetáclu de camaroti. (com seus botões...) Êta, nóis! Ocê num nasceu pra ser forti, nem teim valentia... mas tem muita esperteza, hein!; dá um coro fácil em político ou pastor de igreja. Quiri aqui meu pai me visse agora... He,He, He! Lá vem ele...
Nesse momento, uma sensação de vitória já lhe abria o canto dos lábios, quase sorria, todo fanfarrão. O medo de antes, era agora quase poder. Parecia que o próprio macaco era quem ia dar cabo do lobo. Sentado, bonachão, esperou ainda um pouco mais. Estava seguro. Certo dos fatos que viriam. Baixinho, ele se vangloriava de tão inteligente que era, e de como tinha a feito a onça de besta para lhe servir. Com a pulga atrás da orelha, a onça, que não era besta nem nada, e para quem a caminhada permitiu rever um pouco aquela história, espreitava, e, estranhando, decidiu chegar mais perto da pedra onde estava Micala. Tão perto chegou a ponto de ouvi-lo se gabar de sua trama. Ficou transtornada. Virou uma fera. Sua raiva foi tamanha que dum salto alcançou logo a cabeça do safado. Do diabo do bicho sentado na pedra não sobrou nem o rabo. O lobo parou atônito, até ele se assustou com aquele rompante inesperado... Respeitosamente foi se afastando... Nem era preciso explicação, já sabia tudo... Como diziam pela vizinhança: O peixe morre pela boca.

Exercício de Narrativa - Foco: o "tempo" na narrativa

DO TRAMPOLIM
Finalmente chegou o momento, pensou. Ali estava afinal, depois de tanto preparo, centenas de horas de prática e exercícios infindáveis, festas e feriados trabalhando, além dos dois anos longe de sua família. Puxa! Quantas saudades!!! Conseguiu até mesmo resistir ao desejo de ter alguém para passear de mãos dadas, fazer amor, e beijar, beijar, beijar... kiss all the time, diziam os amigos do Los Angeles Aqua Team. Mas, não. Manteve o foco, redobrara o treinamento nos momentos de crise do corpo, do coração, da cabeça... Nesse momento, enquanto pensava essas coisas, outros pensamentos entravam na fila, empurrando, se cotovelando, e começavam a acumular pelos lados; depois, uns por cima dos outros. Sabendo o que devia fazer, o rapaz começou a se posicionar no trampolim. Houve um momento que quase chegou a desistir; seja por desentendimento com seu coach, um americano rigoroso; ou saudades da family, como podia-se ler no portarretrato de sua cômoda; algumas notas baixas na university, a irmã afora o som desta palavra; além daqueles instantes de vacilação... Valeria a pena tudo aquilo? Seria um sonho em vão? Quais seriam suas reais chances? E se ele deixasse o esporte e focasse nos estudos? E se essa prova abrisse portas? Era uma dicisão que precisava enfrentar, afinal aquilo era sua existência. Entre flashes de pensamentos, entrecortados, intrusos, incômodos, parcos lances do evento entravam por seus olhos. Sentia uma alegria gostosa por estar ali. Toda concentração era pouca. Be focused, lembrando do comando do técnico. Tentou a respiração; sim, contando ajudaria... one, two, trhee, four, Five, six, seven... Momento incrível havia vivido nas eliminatórias! It was really great!, You’re the one, man! ouviu dos companheiros de equipe, entusiasmados. Com certeza, tinha tantas chances quanto qualquer de seus adversários. Iria aproveitar seu momento. Apenas uma fisgada no joelho da semana anterior, lembrou. Coisa pouca... Nada... Isso... Nada, tentou se convencer. Decididamente estava bem preparado; I’ll work hard, prometeu ao pai antes de embarcar para os States, e o fez cada minuto de sua trajetória até ali... Respirou uma vez mais... eight, nine, tem, eleven, twelve, thirteen, fourteen, fifteen... Noitadas nem pensar... sentia falta mesmo era de uma folga para relaxar, mas era cedo demais para isso. Ainda havia muito caminho a trilhar. Foco, foco, foco... daria seu best jump ever, como desafiaram os colegas. Respira. Um salto de ouro. Respira. O joelho era de ferro, com certeza! Poderia até ser uma Prata... Mas ouro era seu objetivo. Seria técnico ao extremo, mas leve e gracioso... sixteen, seventeen, eighteen, nineteen, twenty... Ouvia o murmúrio da galera na arquibancada; vozes, anúncios, e sons diversos compunham uma paisagem sonora instigante, aquele era o momento sem dúvida, estava excited com a perspectiva. Faltava muito pouco para o salto do sucesso. Respira... be focused... go, go! Essa já é sua champion! Já estava na ponta da prancha e pronto. No último segundo a certeza: Ready! Go! Naquele instante ganhou os céus num salto para a liberdade. Em questão de segundos, enquanto pairava leve e solto no ar, pode ver o céu, a água, a arquibancada recheada de guarda-sóis e chapéus coloridos. O joelho apenas obedecia, firme, como deveria ser. Nesse trajeto, outro par de olhos buscaram os seus, olhos jovens e femininos, doces olhos de amor. Naquele exato instante, soube da única certeza do seu destino.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Quem Ensina e Quem Aprende

- Vamos lá! Que letras são essas aqui? A... E...
Ele a olha, buscando uma ajuda em seus lábios, enquanto espera com os seus também entreabertos, como quem está pronto para pronunciar. E para.
A professora já havia feito este trajeto várias vezes com o grupo, não era possível que ele não soubesse a resposta. Com certeza não havia prestado atenção enquanto ela explicara o som daquelas letras. Não. Não era possível! Todos os outros já tinham aprendido. Só ele não conseguia reproduzir o som das vogais, mesmo olhando para as letras. Quantos exercícios já haviam feito, meu deus! Ainda paciente, resolveu tentar mais uma vez. Provavelmente, ele teria sucesso, caso ela falasse junto com ele. Tentou mais duas vezes.
- Olha, vamos falar junto, está bem?
- Tá beim!
- ES-tá BEM, repete.
- ES –tá beim.
- A
- A
- E
- E
- I
- I
E, assim, ela o ajudou a rever cada um dos sons, apontando o sinal gráfico equivalente no papel. Fez isso duas vezes. Agora, certamente, ele conseguiria fazê-lo sozinho.
- Agora é sua vez, você vai conseguir sozinho. Está pronto?
- Ponto.
- Não é “ponto”, é PRON-TO, repete!
- Ponto.
Com quase cinco anos, qualquer criança saberia aquela sequência. Havia mesmo algumas crianças que já começavam a formar algumas sílabas. No ano anterior, tiveram contato com as vogais e fizeram várias atividades, escrevendo cada uma. O pequeno aluno tinha especial facilidade com a letra E, que iniciava o seu nome,  esta foi a que mais ficou marcada em sua memória. Ainda que não soubesse escrever o nome, sabia que começava com E. Neste novo ano já haviam feito as lições do livro, com o A, o E e o I. Todos deveriam saber cada uma delas com facilidade. Mas em seu caso, ela tinha a impressão de que nada havia sido feito. Ele não conseguia identificar as vogais já trabalhadas durante todo aquele tempo.
Apontando novamente cada um dos sinais, ela o guiava esperando o sucesso tão esperado. Depois do A, veio o E, e depois do E... o silêncio. Ele novamente a olhou, esperando os lábios dela denunciarem a letra seguinte. Mas a denúncia não veio. Impotente, seu semblante franziu. Ele mesmo sentia que não estava conseguindo dar aquilo que a professora tanto queria. Ele a decepcionava. E não queria isso.
- Vamos Elder, você consegue! Ela insistiu... Este é o A, este é o E, e este é o...?
- O... Ele repetiu com se fosse conseguir no embalo do estímulo recebido. Mas não conseguiu atinar aquele pauzinho com nenhum som do qual ele se lembrasse.
Só podia ser falta de interesse. Quantas vezes ele desviava sua atenção durante as atividades. Vivia buscando refúgio no colega ao lado: uma brincadeira aqui, um detalhe da sala ali, uma caneta no chão, o colega. Enfim, fugia no momento em que era encurralado e tinha que dar conta das vogais. Ele já sabia o som, era só questão de associar com o desenho. O A era de amor, o E de Elder (mas também de estrela), o I de igreja (que ele ia todo domingo de manhã coma mãe), o O de ovo (que ele adorava comer no pão), e o U de uva (mas em casa ele só via banana).
Era um bom garoto... simpático, risonho, carinhoso. Tinha um bom relacionamento com todos os coleguinhas, dividindo e partilhando os brinquedos, dançando e brincando nos momentos de descontração, ou no parque. Adorava atividades com pintura ou desenho para colorir. O problema era com a alfabetização. Aí ele empacava. Não tinha facilidade com as letras.
Enquanto a professora esperava a resposta, outros trinta alunos conversavam, riam, ou já brincavam pela sala. É um inferno, ela pensava. Não podia virar as costas para dar atenção para um, que os outros já começavam a aprontar. Sempre quis ser professora, mas não sabia o que a esperava. Ao contrário de algumas amigas que só fizeram pedagogia porque era o curso que podiam pagar, ela sabia desde pequena que seria professora. Desde jovem sonhava com seu grupo (pequeno) de pequenos aprendizes. Cada um em seu uniforme... Limpinhos, material arrumadinho em cima da carteira, com uma toalha de plástico forrando a mesa (como era no seu tempo de aluna). Todos fazendo a atividade proposta, formando sílabas, palavras, e logo lendo frases inteiras. Era isso que imaginava. Era essa sensação de realização pelo trabalho feito que ela tanto esperava. E isso só acontecia às vezes. Em outras, o sentimento de impotência a deixava desnorteada. No mundo real, nem todos tinha sequer roupa, quem dirá uniforme, nem material escolar como pedido na lista, adequado e organizado, nem todos limpinhos ou que podem comer antes de ir para a escola. Por esses e outros motivos, às vezes de ordem biológica, psicológica, algum tipo de deficiência, mas a maioria de ordem familiar, ou falta dela, não aprendem da mesma maneira. O que fazer? Era isso que movia agora seus pensamentos quando, ao final da aula, olhava aquelas crianças correrem para suas casas. Sem consciência da tragédia em que estavam metidos.
No começo, toda paciência do mundo. Já agora, era preciso outra estratégia. Iria pegar pesado com eles, exigir atenção e mais acerto quando solicitado. “Alguns alunos são assim: só funcionam na base da pressão”, uma colega lhe disse. Além disso, era frustrante não ver nenhum resultado depois de tantas atividades feitas. Estava, então, decidida, o caminho seria o da imposição. Com certeza isso daria algum resultado. Além do mais, no caso do Elder, aquela situação a estava tirando do sério. Não havia dúvidas de que, caso ele tivesse um pouco, um pouquinho só de boa vontade, caso ele se esforçasse um pouquinho que fosse, ele conseguiria fazer o que ela estava pedindo. Não era muito. Uma atividade tão simples, tão fácil... Era só uma questão de mais interesse mesmo. Então, alterando o tom de sua voz, já denotando impaciência e determinação em conseguir um resultado satisfatório a qualquer custo, retomou a lição.
- Elder, eu já falei o som destas letras duas vezes junto com você. Não é possível que você não consiga falar cada uma delas sozinho. Você está prestando atenção na lição?
- Tou tofessora!
- PROfessora – ela insistiu. Então, vamos lá novamente. Agora eu quero que você repita certinho cada um, está bem?
- Tá beim!
- ES-tá BEM! Lembra, repete!
- ES-tá Beim.
- Vamos lá, presta atenção, hein!
Novamente o percurso com o dedo recomeça. Depois do A, ele olha e recolhe a expressão de aprovação da professora. Ela fica feliz quando ele acerta, ele também. Vem o E, e novamente ele é aprovado em sua tarefa. Isso é bom. Quando acerta, experimenta uma sensação gostosa de “saber”. Não gosta de errar na frente dos coleguinhas, que depois azucrinam com gozações. Então aquilo é uma sensação boa. Não vão rir dele depois. E senti que está agradando a professora. Mas começa a ficar preocupado, está chegando aquele pauzinho. Porque não bate o sinal, assim ele não correria o risco de estragar tudo. Sim, era isso, no final das contas, a professora estava sendo tão paciente e ele estava fazendo tudo errado. Bate sinal, bate sinal, bate sinal, ordenava em seu pensamento. Mas o tempo não foi seu amigo, e o sinal muito menos. Não pode evitar, portanto, de ver que o dedo da professora já apontava o pauzinho e seu olhar exigia que ele falasse.
Travou.
Outros alunos olhavam e pareciam querer uma atitude da professora. Ela via isso em seus olhos. Isso já era demais. Aquilo ela não admitiria. E sua autoridade na sala de aula. Ele havia de falar de qualquer forma. Pensou no que se passava na cabeça daqueles alunos enquanto observavam. Certamente ele está brincando com ela? O que ela vai fazer? Ele está fazendo ela de boba? Não falou porque não quis? Ela vai fazer ele falar?
- Fala, Elder! Exigiu em voz alta. Fala de uma vez! Insistiu subindo ainda mais o tom de voz: - Não é possível que você não lembre!  Fala, fala... é I, I, I, I. Lembra? A... E... I... As letras iam saindo quase aos berros, querendo alcançar todos os Elders daquela sala, quem sabe daquela escola. Pegou no dedo do menino e colocou no papel, uma vez mais: - Olha este é o A, este é o E, e este (dando ainda mais ênfase) É O I, I, ouviu?
Neste momento percebeu que o menino chorava. Ele começou a chorar no momento em que ela rompera em gritos. Não conseguiu controlar o peso do fracasso e a humilhação na frente dos colegas, além do susto da mudança repentina da professora, ela agora lembrava-lhe sua mãe gritando que ele era burro, não sabia fazer as coisas direito... Só que ele não havia feito nada, só não conseguia falar... Não entendia porque estava sendo tão rude com ele. Com certeza não gostava mais dele.
Sentindo que havia perdido o autocontrole e percebendo que magoara o pobre garoto, abaixou-se e aproximou-se dele, pedindo que não chorasse.
- Me desculpe, Elder... Eu exagerei... Você não tem culpa.
Esperava que o menino se agarrasse ao seu erro, dissesse que ela havia gritado, que falaria com sua mãe, etc. Por isso se surpreendeu quando ele buscou o seu ombro e, entre soluços, balbuciou:
- Me ajuda, professora... eu preciso de ajuda.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O Texto Científico como Processo de Formação Contínua


O texto científico é visto, muitas vezes, como um bicho de sete cabeças, já que as burocracias institucionais ganham peso na hora de escrever. É sim preciso atenção a certas convenções, e com as normas ABNT. Mas escrever um artigo deve ser um gesto de desejo de dividir uma experiência. Seja ela fruto de uma pesquisa ou de uma prática específica, como a educacional, a artística, científica, etc., valorizando experimentações que deram certo, ponderando sobre problemas encontrados, ou, mesmo, caminhos de investigação que começam a ser trilhados (imprimindo o valor do estudo em nosso contexto, metodologia, ações já encaminhadas,  e resultados parciais), etc. Portanto, é importante que o texto aponte uma questão que seja oriunda da prática, fruto de inquietações na relação com o objeto, ou da contribuição dos participantes da pesquisa. Desta forma ele servirá como meio de registro e reflexão sobre o próprio fazer.
Em educação, pensando na escola pública, um objeto de pesquisa pode ser a proposição de uma prática diferenciada em sala de aula, e o texto traria a idéia, elementos do planejamento, a observação e análise dessa experimentação; pode, também, ser um relato de experiência da vivência e aplicação de um determinado material didático (Caderno do Professor/ Caderno do Aluno, por exemplo) tanto partindo do ponto de vista do professor quanto do aluno; uma proposta de formação desenvolvida em HTPC; entre outras possibilidades. No caso do artigo científico, não é preciso que seu texto seja baseado em pesquisa aprofundada. Isso é preocupação própria para uma dissertação ou tese. Mas que traga elementos que apresentem de forma clara sua experiência, como: introdução ao tema abordado e ao problema investigado, como surgiu a idéia, onde ocorreu, a prática, quando, com quem, qual metodologia, e aspectos próprios de cada vivência na relação com a teoria de apoio, e as considerações finais. Essa forma de registro e organização das idéias irão refletir de volta para o fazer do professor, que passará olhar mais atentamente para os processos vividos em sala de aula. É por isso que todo educador deve vivenciar um processo de escrita de um texto científico.
Escrever um texto científico é uma forma de aprendizado. É na busca de parceria com especialistas no assunto abordado que há expansão do conhecimento e modificação da prática. Entretanto, não é a citação de pensamento de autores que deve guiar a elaboração do pensamento, muito menos deixar que essas citações sejam a maior parte do texto. Não se deve achar que as citações são mais importantes do que a sua experiência. Ela sim é que deve, de vez em quando, abrir espaço para um ou outro autor colaborar com o seu pensamento, em geral, reforçando aquilo que você descobriu fazendo ou estudando. Muitas vezes descobriu junto com o estudar, no diálogo com os autores apontados, e isso é mais interessante. Entender que não construímos conhecimento sozinhos.
Aqueles que nunca experimentaram escrever e apresentar um artigo científico devem passar, em algum momento, por essa experiência. Além dos exercícios da produção intelectual (através da qual também aprendemos a fazer – ou seja aprendemos a escrever um texto científico escrevendo) e de participação no evento (espaço para discussão e conhecer pessoas), há também o prazer de ver um trabalho seu publicado nos anais de um congresso, que é muito bom, e valoriza seu currículo. Geralmente fazemos isso ao desenvolver uma pesquisa no mestrado, mas hoje em dia é comum vermos alunos de graduação apresentando seus trabalhos.
Caso não saiba por onde caminhar, qualquer pessoa pode, por exemplo, escrever sobre uma planejar e propor uma experiência educativa com seus alunos; fazer uma leitura de um processo de formação, ou projeto educativo, do qual vem fazendo parte (como: Recuperação Escolar; Lugares de Aprender; Redefor, Escola da Família, etc.). Ou seja, o texto pode ser um "relato de experiência" com apontamentos sobre a trajetória, orientações didáticas, aspectos positivos, negativos, e possibilidades de continuidade. Meu 1º artigo trazia minha percepção sobre a importância, para nós alunos do curso de mestrado do Mackenzie, do Ambiente Virtual de Aprendizagem Moodle na disciplina de Novas Tecnologias em Educação, e suas repercussões na minha prática. Com esse exemplo, quero mostrar que há vários caminhos para a escrita de um texto. Depois de decidido qual será trilhado, é preciso selecionar quais serão os autores com os quais você vai dialogar em seu texto. 
Ao visitar sítios de congressos na internet, encontramos os temas que nortearão as mesas de debate. Um desses temas pode, também, lançar luz sobre sua produção, uma vez que você veja contemplado naquele tema um caminho que vem explorando em sua prática.Os sítios dos congressos também trazem  orientações para a escrita do texto, com orientações sobre tamanho do texto (número de páginas), fonte, parágrafo, uso de imagens, tabelas, gráficos, etc. Muitos congressos pedem que você envie primeiro um resumo, se aceito, você envia o texto depois, ou a publicação pode ser apenas do resumo. Particularmente, não vejo muito sentido em publicar apenas um resumo, já que com, em média no máximo, 250 palavras, não se pode dizer muita coisa. Para quem precisa publicar, em virtude de exigência de algum programa de pesquisa, tudo bem, mas o trabalho fica prejudicado e os possíveis leitores ficam privados do texto sobre o qual tiveram interesse.
Quem disse que o conhecimento da escrita é privilégio de quem fez Letras? Em primeiro lugar, vale ressaltar que a competência não vem junto com o diploma. Ela é fruto da prática, da leitura, e do exercício de revisão. Revisão esta não só da parte material da escrita, mas também do seu conteúdo intelectual, ou seja, escrever é um exercício que aprimora a organização do pensamento. E isso é uma demanda de qualquer área do conhecimento. O processo de escrita, assim, acontece como uma forma de planejar, observar, avaliar, retomar, e melhorar a prática. Portanto, é preciso arregaçar as mangas e escrever.
Em muitos casos não há o hábito de escrever e isso gera um bloqueio. É preciso se libertar das travas impostas pela educação autoritária que tivemos, que enchia nossos textos de anotações em vermelho, apontando todo tipo de erro ortográfico ou gramatical, sem discutir as idéias apresentadas. Se você não está acostumado a escrever, não tenha medo, pense que o importante é a experiência que você quer partilhar. Mais do que ortografia (que o Word corrige) e gramática (que os amigos podem revisar até que você pegue o jeito), escrever irá te dar o norte de como organizar seus pensamentos. Por isso é condição sine qua non que você leia artigos científicos antes de começar a escrever o seu. Fazendo isso, você entenderá melhor como desenvolver certas partes do texto, como: “resumo” (para artigo), “Introdução”, “metodologia”; “desenvolvimento”; “considerações finais”; “referências bibliográficas”; bem como, formas de organizar o texto. Coloco abaixo os links de dois dos meus artigos, com características bem diferentes, com publicação digital. No primeiro (meu primeiro) é possível observar que não se trata de uma pesquisa, e sim, como disse antes, da observação de um percurso de formação, e no segundo (um dos mais recentes) um recorte de parte dos frutos da pesquisa de mestrado.
Escrever é uma forma de se posicionar no mundo, de revelar-se ao desconhecido. É sempre um ato de generosidade. E no caso do texto científico, é a generosidade de dividir anseios, inquietações, experimentações, possibilidades de respostas, exposição de processos, modos de ver e perceber, formas inventivas de busca de solução de problemas. Por tudo isso, a escrita de um texto científico deve ser entendida como forma de desenvolvimento intelectual e profissional, um processo contínuo de formação, tão essencial ao fazer do educador.
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