quarta-feira, 18 de maio de 2011

Quem dera assim fosse... exercício de narrativa com personagem e uso de palavras com prefixos ou sufixos emprestados

Quem dera assim fosse...

O barulho do bater na borracha do sapato era ouvido por quem passasse em frente à loja. A alegria do martentelar era orquestrada por seu José, que habilmente apertava daqui e dali, batia, esfregava o couro liso e escorregoso, enfiava de novo aqui e puxava ali, e pronto, mais um cliente que logo ficaria feliz ao ver o sapato velho, novo, de novo. Há quarenta anos era assim José. Seu José Sapateiro, como chamavam. Não havia na região ninguém com maior destreza. A música clássica na velha vitrola completava o cenário sonoro sugerindo ao maestro da borracha o ritmo do labor. Mãos, sapatos, ferramentas e apetrechos bailavam, indo de lá para cá, se entrelaçavam e combinavam. Era de uma energia descaracterística para seus setenta anos, vitalidade admirável.
Sua loja era um microcosmo da alegria. Terminaria seus dias ali. Com certeza! Não nascera para depender de ninguém. Muito o contrário. Um engenheiro e dois doutores haviam sido criados e educados com o fruto dos sapatos. Era também a lembrança da amada que se despediu dez anos antes. O amor, sentimento costumoso em sua alma, não o deixava dormir sem um ‘boa noite’ à saudosa companheira. Tinha orgulho do ofício e da fama que cultivava. Ali se sentia bem, era onde gostava de estar. Não era muito espaçoso, mas bem aproveitado. Ao fundo, uma prateleira grande recebia sapatos prontos, a vitrola amiga, a cola e uma caixa azul com pedaços de couro; na entrada, o balcão corria de um canto ao outro, lá descansavam o talão de pedidos, um porta canetas com duas ou três delas, e uma caixa aberta com uma porção de encomendas espalhadas; os sapatos que iam chegando eram depositados com o respectivo nome de seus donos em uma prateleira baixa que ficava à esquerda de quem entra; no meio da loja, algumas ferramentas, um esmeril, uma bigorna e uma pequena prensa. Aquele era o universo de Seu José Sapateiro.
Abria a loja bem cedo todos os dias, sempre as sete, pontualmente. Acordava antes das cinco para o ritual matinal: o banho morno; um café forte; o bom dia da amada; as notícias no rádio; e o vestir-se para a lida. A velha porta da loja rangia até o alto, mas não se atrevia a barrar o caminho. O corpo franzino, curvado, se esticava e empurrava, levantando a cansada e preguiçosa porta. Isso lhe cutucava a tendinite no braço direito. Preciso concertar essa joça, resmungava, como todos os dias. Logo a seguir começava sua performance que só era interrompida ao meio-dia, para o almoço. Este era um momento sagrado para seu José, que, depois de baixar a porta da loja, seguia para casa onde Dona Gê, a vizinha, lhe deixava o prato de comida posto a mesa. Não era caridade, ele lhe pagava religiosamente. Duas vezes por semana ela ainda limpava a casa e lavava a roupa. Era tudo que ele precisava. Às vezes, ela o esperava com o pretexto de temperar a salada, fazer um suco, coisa assim, e puxava conversa. Tinha dó do pobre sapateiro, Homem sozinho esse seu José, meu Deus! Ela pensava, Poderia muito bem viver com um dos filhos. Mas não! Pode isso?! Três filhos bem criados... bem de vida... e ele fica aqui, nessa vida sem graça...?! Parece que tá se castigando... Mas a mulher se admirava mesmo era com a memória que ele tinha, lembrava o nome de cada cliente quando conversava com ela. De sua loja fazia questão de chamar pelo nome e cumprimentar cada um que passava por lá, como ela mesma já tinha visto.
Voltava para casa sem se distrair pelo caminho. Não visitava os filhos, nem amigos, Passe por aqui depois da loja, os filhos viviam dizendo. Não tinha vontade. Ao contrário do corpo ativo, decidido e forte com seu martelo a bater, agora voltava cansado, sem energia. Como todos os dias. A casa era pequena, um pouco escura, poucos móveis. Uma pequena mesa de madeira, uma cadeira e um fogão de duas bocas povoavam a cozinha, no quarto podia-se perceber a cama de solteiro, sobrando na penumbra. Não desgostava de quadros, mas não os tinha. Também as plantas não lhe desinteressavam, mas também não lhe agradaria cuidar delas. Não perdia seu tempo com tais coisas. Sentava na cadeira e esperava o tempo passar, não tinha fome, quase nem sede, enrolava um cigarro de palha e observava a fumaça desaparecer no ar. Era em casa que se lembrava do reumatismo. Definitivamente, ninguém reconheceria ali o José Sapateiro de horas atrás. O maestro dos consertos de sapato. Uma tristeza profunda lhe tomava conta. A solidão costumeira o esperava. O retrato da mulher era a única moldura que pendia numa parede de sala e quem lhe fazia companhia no gastar das horas. Devia mesmo ser castigo, como pensava a vizinha. Não aceitava a partida da mulher. E ficava ali. Depois de um tempo comia e se deitava.
Naquele dia, não trabalhou pela manhã. Foi ao médico. Não pelas dores nas costas e o reumatismo que já eram habituais, convivia bem com elas. Mas por uma dor aguda na região do estômago que começou a tirar-lhe o sono recentemente, e estava piorando. A princípio não deu bola e tomou alguma coisa para aliviar. Na manhã da segunda-feira, porém, a saliva escarlate lhe preocupou. Não há de ser nada, não pode ser, Não posso ficar sem trabalhar, Virar um imprestável, Preciso falar com o doutor João, decidiu. Seu maior pesadelo era esse: um dia ter a sensação dissaborosa de que não valia mais nada. Isso nunca.
Do médico à oficina, pelo resto da tarde. Voltou para casa as seis, como de costume; sentou-se na mesma cadeira, como todos os dias. Entretanto, seu José Sapateiro, naquele final de tarde, trazia algo especial no olhar. O olhar perdido e profundo, que carregava aquela tristeza desorientada e calada de todos os dias, dava espaço agora a uma quase certeza, uma quase esperança. Já estava cansado daquilo tudo, da solidão, da gasteira da vida cotidiana, da saudade doída. Apesar do ofício e da alegria que sentia na loja, já se enojara da dor da reclusão, sem poder abandoná-la, era seu escravo. Um martírio. Não queria continuar aquela vida de lamentação pela mulher que se foi. Depois de tanto tempo, naquela tarde, bendita tarde, soube que o descanso estava próximo. No consultório, com toda cautela de quem teme pela fragilidade alheia, Dr. João contou sobre a flor no estômago, uma flor grande e vermelha, até ele ficou espantado quando viu o exame, pois era realmente uma coisa aquela flor. Não havia esperança... E isso lhe trouxe alívio.
À noite, a dor veio caprichosa e insensata. Mas o pobre homem não estremeceu. Pelo contrário, já a esperava, como advertiu Dr. João, Qualquer hora dessas, ele disse, Pode acontecer... Resolveu tomar um banho, e, como não era costume, assobiou uma melodia qualquer enquanto fazia a barba, colocou um pijama novo que guardava numa caixa, comeu com alegria e deitou-se mais cedo do que o costume, não sem antes beijar o retrato da esposa, que colocou ao pé da cama. Estava pronto. Colocou uma sinfonia na vitrola, Mozart, como todas as noites, e deitou. Um olhar ansioso e pensativo fitava o teto, passeava por manchas do reboco, e em seus ouvidos a sinfonia da borracha juntava-se a de Mozart. Assim ficou por um tempo. Os olhos cansados foram se fechando. À sua frente viu surgir a casa de infância e se viu sozinho no sótão, a espiar quem passava na rua adiante, uma solidão quente e gostosa lhe aguçou a memória daqueles tempos esquecidos, experimentou uma preguiça prazerosa, que lhe enchia o ser. Seria dali o germe da solidão que lhe comeria anos mais tarde? Ouviu então o pai lhe chamando para a oficina. Foi ali que aprendeu o ofício, a custo de muitos safanões, e que escutou inúmeros conselhos do pai, tinha que dar o seu melhor para fazer o serviço bem feito e agradar os clientes. Já agora, distante, era uma lembrança boa. Fechou os olhos e ao abri-los estava na calçada em frente à loja de sapatos, ao lado o pai, já grisalho, a mulher, a futura esposa, e alguns amigos que juntos comemoravam a inauguração da Sapataria do José. Não podia estar mais feliz, ali pode reviver aquela sensação de orgulho e conquista do sonho. Isso não durou muito, numa parede surgiu um grande espelho, as crianças entraram correndo para olhar a roupa nova, estavam se preparando para a missa do domingo, Não demorem, gritou a mãe, que estava linda como todo dia de missa, ela costumava dizer que o domingo era o dia mais bonito da semana, Nossa! Como você está bonita, meu amor! Por que você me olha assim, parece que nunca me viu? Acho que nunca te vi assim... Passou pela porta e pôde ver os amigos no grande salão, todos em festa, em sua festa, abraços e felicitações pelo aniversário, setenta anos, reconheceu seus clientes ali, sobravam elogios pelo homem e pelo ofício, as palavras lhe faltavam, sentia-se realizado, completo, seguiu caminhando e viu ao longe sua amada, mais linda do que dia de domingo, acenou com alegria e gritou Me espera... Quero te abraçar... Estou sempre te esperando, vem...  José correu e correu, correu por colinas e descampados, passou por várzeas e morros, correu sem parar e descansadamente, sentia-se renovado quanto mais corria ao seu encontro, ao final de tanto correr chegou a um jardim belo e perfumado e então a abraçou, abraçou forte, sem pressa, e esperou, esperou o corpo sentir o calor do abraço, a textura dos tecidos, a delícia do beijo suave... Então José Sapateiro suspirou, um suspiro profundo e incansável, que fez a alma desgarrar do corpo velho e cansado e se juntar àquela que há tanto ansiava.
Quem dera assim fosse meu último suspiro.